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Os livros sobre o Budismo
com freqüência afirmam que um dos dogmas metafísicos mais básicos do Buda é que
não existe uma alma ou um eu. No entanto, uma pesquisa nos discursos do Cânone
em Pali - o registro existente mais antigo dos ensinamentos do Buda - sugere
que o Buda ensinou a doutrina de anatta ou não-eu, não como uma
afirmação metafísica, mas como uma estratégia para obter a libertação do
sofrimento. Se alguém usar o conceito de não-eu para não se identificar com os
fenômenos, irá ficar além do alcance de todo o sofrimento e estresse. Quanto
àquilo que se encontra além do sofrimento e estresse, o Cânone menciona que
embora possa ser experimentado, está além do alcance de uma descrição e por
isso tais descrições como "eu" ou "não-eu" não são
aplicáveis.
A evidência para esta
leitura do Cânone está concentrada em quatro pontos:
1. Numa
ocasião em que é feito um pedido direto ao Buda para que tome uma posição em
relação à questão ontológica, se existe ou não um eu, ele se recusa a responder.
2. Os
trechos que afirmam de forma mais categórica que não existe um eu estão
qualificados de tal maneira que eles cobrem toda a realidade que pode ser
descrita, mas não toda a realidade que pode ser experimentada.
3. As idéias
de que não existe um eu estão niveladas com as idéias de que existe um eu como
uma "cativeiro de idéias" as quais uma pessoa que tem como objetivo a
libertação do sofrimento faria bem em evitar.
4. A pessoa
que alcançou o objetivo da libertação vê a realidade de tal maneira que todas
as idéias - mesmo aquelas noções mais básicas como eu e não-eu, verdadeiro e
falso - não têm mais poder de influenciar a mente.
O que segue é uma seleção
de trechos relevantes do Cânone. Eles são oferecidos com a advertência de que
em última análise nada conclusivo pode ser provado através da citação de
textos. Estudiosos têm apresentado argumentos para colocar em dúvida
praticamente tudo no Cânone - quer seja apresentando novas traduções para
termos cruciais ou questionando a autenticidade de praticamente cada trecho
contido nele - e dessa forma o único teste verdadeiro para qualquer
interpretação é colocá-la em prática e verificar aonde ela conduz em relação a
obter a libertação da mente.
* * *
1. Compare os dois diálogos a seguir.
Tendo sentado a um lado, o errante Vacchagotta disse ao Mestre, 'Então,
Venerável Gotama, existe um eu?' Quando isso foi dito, o Mestre ficou em
silêncio. 'Então, não existe um eu?' Uma segunda vez o Mestre ficou em
silêncio.
Então o errante Vacchagotta levantou-se do seu assento e partiu.
Em seguida, não muito tempo após o errante Vacchagotta ter partido o
Venerável Ananda disse ao Mestre, 'Porque, senhor, o Mestre não respondeu
quando foi perguntado pelo errante Vacchagotta?' - 'Ananda, se eu, tendo sido
perguntado pelo errante Vacchagotta se existe um eu, tivesse respondido que
existe um eu, isso estaria conforme com aqueles sacerdotes e contemplativos que
são os expoentes da doutrina eternalista (isto é, a idéia de que existe uma
alma eterna). E se eu…tivesse respondido que não existe um eu, isso estaria
conforme com aqueles sacerdotes e contemplativos que são os expoentes do
niilismo (isto é de que a morte é a aniquilação da experiência). Se eu…tivesse
respondido que existe um eu, isso seria compatível com o surgimento do
conhecimento de que todos os fenômenos são não-eu?
'Não, Senhor.'
'E se eu…tivesse respondido que não existe um eu, o confuso Vacchagotta
ficaria ainda mais confuso: "Aquele eu que eu costumava ter, agora não
existe?"'
- SN XLIV.10
Mogharaja:
De que forma uma pessoa vê o mundo
de modo que o Rei da Morte não a veja?
O Buda:
Tendo eliminado todas as idéias
com respeito ao eu,
sempre plenamente atento, Mogharaja,
veja o mundo como vazio.
Dessa forma uma pessoa está acima e além da morte.
Essa é a forma como uma pessoa vê o mundo
de modo que o Rei da morte não a veja.
- Sn V.16
O primeiro trecho é um dos
mais controversos no Cânone. Aqueles que acreditam que o Buda tomou uma posição
ou outra na questão sobre se existe ou não um eu têm que explicar o silêncio do
Buda e normalmente o fazem focando na sua declaração final para Ananda. Se uma
outra pessoa mais madura espiritualmente que Vacchagotta tivesse feito a
pergunta, eles dizem, o Buda teria revelado a sua verdadeira posição.
Esta interpretação, no
entanto, ignora as duas primeiras sentenças do Buda para Ananda. Não importa
quem faça a pergunta, dizer que existe ou não existe um eu seria cair numa das
duas posições filosóficas que o Buda evitou durante toda a sua carreira. Quanto
à terceira sentença, ele estava preocupado em não contradizer "o
surgimento do conhecimento de que todos os fenômenos são não-eu" não
porque ele sentia que esse conhecimento em si era correto sob o ponto de vista
metafísico, mas porque ele viu que o seu surgimento poderia conduzir à
libertação. (Trataremos do conteúdo desse conhecimento no ponto 2 abaixo)
Esse ponto é confirmado
quando fazemos uma comparação com o segundo discurso. A diferença fundamental
entre os dois diálogos está nas perguntas feitas: No primeiro, Vacchagotta pede
ao Buda que tome uma posição sobre a questão, se existe ou não um eu, e o Buda
fica em silêncio. Na segunda, Mogharaja pergunta sobre uma forma de ver o mundo
para que se possa superar a morte e o Buda responde ensinando-o a ver o mundo
sem relacioná-lo à noção de um eu. Isso sugere que, ao invés de ser uma
afirmação de que não existe um eu, o ensinamento sobre não-eu é mais uma
técnica de percepção que tem como objetivo conduzir para além da morte, Nibbana
- uma forma de perceber as coisas sem a identificação de um eu, nenhuma noção
de que 'eu sou', nenhum apego a 'eu' ou 'meu'.
Portanto, parece mais
honesto tomar o primeiro diálogo pelo que aparenta ser e dizer que a questão,
se existe ou não um eu, é algo sobre o qual o Buda não tomou uma posição, sem
levar em consideração se ele estava falando para uma pessoa confusa
espiritualmente como Vacchagotta ou uma pessoa mais avançada como Ananda. Para
ele, a doutrina do não-eu é uma técnica ou estratégia para a libertação e não
uma posição metafísica ou ontológica.
* * *
2. Os dois trechos a seguir, tomados
em conjunto, são com freqüência usados como a prova mais forte de que o Buda
negava a existência de um eu de forma muito ambígua. Note, no entanto, como os
termos "mundo" e "Todo" são definidos.
Ananda:
Diz-se
que o mundo está vazio, o mundo está vazio, venerável senhor. Em relação a o
que se diz que o mundo está vazio?
O
Buda:
Está completamente vazio de um eu ou
qualquer coisa relativa a um eu: assim é dito, Ananda, que o mundo é vazio. E o
que é vazio de um eu ou qualquer coisa relativa a um eu? O olho está vazio de
um eu ou qualquer coisa relativa a um eu. Formas...consciência no
olho...Contato no olho está vazio de um eu ou qualquer coisa relativa a um eu.
O
ouvido está vazio...
O
nariz está vazio...
A
língua está vazia...
O
corpo está vazio...
O
intelecto está vazio de um eu ou de qualquer coisa relativa a um eu.
Idéias...consciência no intelecto...contato no intelecto está vazio de um eu ou
de qualquer coisa relativa a um eu. Dessa forma foi dito que o mundo está
vazio.
.
O que é o Todo? Somente o olho e as formas, o ouvido e os sons, o nariz e
os aromas, a língua e os sabores, o corpo e os tangíveis, sensações, intelecto
e idéias. Isso, bhikkhus, é chamado o Todo. Qualquer um que diga, ‘Rejeitando
esse Todo, eu irei descrever um outro,’ se questionado sobre qual poderia ser a
base para essa afirmativa, seria incapaz de explicar e além disso ficaria
angustiado. Porque? Porque isso está além do alcance.
Agora, se os seis sentidos e
os seus objetos - algumas vezes denominados as seis esferas do contato -
constituem o mundo ou o Todo, existe algo que esteja além deles?
MahaKotthita:
Com a cessação e desaparecimento sem deixar vestígios das seis esferas do
contato (visão, audição, olfato, sabor, toque e intelecto) é o caso de que
existe algo mais?
Sariputta:
Não diga isso, meu amigo.
MahaKotthita:
Com a cessação e desaparecimento sem deixar vestígios das seis esferas de
contato, é o caso de que não existe algo mais?
Sariputta:
Não diga isso, meu amigo. .
MahaKotthita:
...é o caso de ambos, existe e não existe algo mais?
Sariputta:
Não diga isso, meu amigo. .
MahaKotthita:
...é o caso de que nem existe, nem não existe algo mais?
Sariputta:
Não diga isso, meu amigo. .
MahaKotthita:
Sendo perguntado.. se existe algo mais, você diz ' Não diga isso, meu amigo'.
Sendo perguntado…se não existe algo mais…se ambos, existe e não existe algo
mais…se nem existe, nem não existe, você diz, 'Não diga isso, meu amigo'.
Agora, como deve ser entendido o significado dessa afirmação?
Sariputta:
Dizendo.. é o caso de que existe algo mais…é o caso de que não existe algo
mais…é o caso de ambos, existe e não existe algo mais…é o caso de que nem
existe, nem não existe algo mais, está-se diferenciando a não diferenciação.
Até onde alcancem as seis esferas do contato é até onde alcança a
diferenciação. Até onde alcance a diferenciação é até onde alcançam as seis
esferas do contato. Com a cessação e desaparecimento sem deixar vestígio das
seis esferas de contato, ocorre a cessação, o alívio da diferenciação.
- AN IV.173
A esfera da não
diferenciação, embora não possa ser descrita, pode ser compreendida através da
experiência direta.
Bhikkhus, essa esfera é para ser compreendida aonde o olho (visão) cessa
e a percepção (notação mental) da forma desaparece. Essa esfera é para ser
compreendida, aonde o ouvido cessa e a percepção do som desaparece… aonde o
nariz cessa e a percepção do aroma desaparece… aonde a língua cessa e a
percepção do sabor desaparece… aonde o corpo cessa e a percepção de sensações
tangíveis desaparece…aonde o intelecto cessa e a percepção das idéias
desaparece: essa esfera é para ser compreendida
- SN XXXV.116
Embora este último trecho
indique que existe uma esfera para ser experimentada além das seis esferas
sensuais, ela não deve ser tomada como um "eu mais elevado". Este
ponto é colocado no Grande Discurso da Causação,
em que o Buda classifica todas as teorias do eu em quatro grandes categorias:
aquelas que descrevem um eu que é ou (a) dotado de forma (um corpo) e finito,
ou (b) dotado de forma e infinito; (c) sem forma e finito; (d) sem forma e infinito. O texto não exemplifica as
várias categorias, mas podemos citar as seguintes como ilustração: (a) teorias
que negam a existência de uma alma e identificam o eu com o corpo; (b) teorias
que identificam o eu com todos os seres ou com o universo; (c) teorias de almas
discretas, individuais; (d) teorias de uma alma unitária ou identidade imanente
em todas as coisas. Ele a seguir rejeita todas essas quatro categorias.
Um outro trecho mencionado
com freqüência para mostrar que o Buda ensinou que não existe um eu é um verso
do Dhammapada, especialmente a terceira estrofe, em que a palavra dhamma se
refere tanto às coisas condicionadas como não condicionadas. Observe, no
entanto, o que o verso diz como um todo: esses insights são parte do caminho e
não o objetivo no final do caminho.
'Todas as coisas condicionadas são impermanentes' --
Quando a pessoa vê isso com discernimento
e se desencanta com o sofrimento,
Esse é o caminho para a purificação.
'Todas as coisas condicionadas são insatisfatórias' --
Quando a pessoa vê isso com discernimento
e se desencanta com o sofrimento,
Esse é o caminho para a purificação.
'Todos os dhammas são não-eu' --
Quando a pessoa vê isso com discernimento
e se desencanta com o sofrimento,
Esse é o caminho para a purificação.
- Dhp 277-79
Como veremos no trecho
abaixo, o Buda afirma que o meditador alcança a iluminação ao ver os limites de
todas as coisas condicionadas, ao ver o que está além delas e ao não se apegar
a nenhuma delas. No verso seguinte, o inquiridor do Buda se refere ao objetivo
como um dhamma, enquanto o Buda o descreve como a remoção ou eliminação de
todos os dhammas - e dessa forma ele vai além de "todos os dhammas" e
qualquer afirmação possível que possa ser feita a seu respeito. Uma vez que o
meditador tenha realizado isso, nenhuma palavra - ser, não ser, eu , não-eu –
se aplica.
Upasiva:
Ele que alcançou o fim:
ele não existe,
ou ele é eterno
livre da aflição?
Por favor, sábio, explique isso para mim
pois esse fenômeno é do seu conhecimento.
O Buda:
Aquele que alcançou o fim
não tem um critério
pelo qual alguém possa dizer isto -
para ele isso não existe.
Quando todos os fenômenos são eliminados,
todos os meios de linguagem
também são eliminados.
- Sn v.6
* * *
3. Embora o conceito
"não-eu" seja uma maneira útil de se desvencilhar das ligações e apegos
que conduzem ao sofrimento, a idéia de que não existe um eu é simplesmente uma
entre muitas idéias metafísicas ou ontológicas que atam as pessoas ao
sofrimento.
Neste caso, bhikkhus, uma pessoa comum sem instrução...não entende o
tipo de coisas que merecem atenção e que tipo de coisas não merecem atenção.
Assim sendo, ela se preocupa com aquelas coisas que não merecem atenção e não
se preocupa com as coisas que merecem atenção. É desta forma que ela se ocupa sem
sabedoria: ‘Eu existi no passado? Não existi no passado? O que fui no passado?
Como eu era no passado? Tendo sido o que fui, no que me tornei no passado?
Existirei no futuro? Não existirei no futuro? O que serei no futuro? Como serei
no futuro? Tendo sido o que fui, no que me tornarei no futuro?’ Ou então ela
está no seu íntimo perplexa acerca do presente: ‘Eu sou? Eu não sou? O que sou?
Como sou? De onde veio este ser? Para onde irá?’
Quando ela se ocupa dessa forma, sem sabedoria, uma entre seis idéias
surgem nela. A idéia de que ‘o
eu existe para mim’ surge como verdadeira e consagrada;
ou a idéia de que ‘o eu não existe
para mim’
ou a idéia de que ‘eu percebo o eu
através do eu’
ou a idéia de que ‘eu percebo o
não-eu através do eu’
ou a idéia de que ‘eu percebo o eu
através do não-eu’
ou então ela tem uma idéia como esta: ‘É esse meu eu que fala e sente e experimenta aqui e ali o resultado de
boas e más ações; e esse meu eu é permanente, interminável, eterno, não sujeito
à mudança e irá durar tanto tempo
quanto a eternidade.’
A essa idéia especulativa, bhikkhus, se denomina um emaranhado de
idéias, uma confusão de idéias, idéias contorcidas, idéias vacilantes, idéias
que aprisionam. Presa por idéias que aprisionam, a pessoa comum sem instrução
não se vê livre do nascimento, envelhecimento e morte, da tristeza, lamentação,
dor, angústia e desespero; ela não se vê livre do sofrimento, eu digo.
Um nobre discípulo bem instruído...entende quais são as coisas que
merecem atenção e quais coisas não merecem atenção. Sendo assim, ele não se
ocupa com as coisas que não merecem atenção,
ele se ocupa com as coisas que merecem atenção... Ele aplica sua atenção
com sabedoria: ‘Isto é sofrimento’...
‘Esta é a origem do sofrimento’... ‘Esta é a cessação do sofrimento’... ‘Este é o caminho que conduz à cessação do
sofrimento’. Quando ele aplica a sua atenção com sabedoria
desta forma, três grilhões são abandonados: a idéia da personalidade, a dúvida
e a aderência a preceitos e rituais.
- MN 2
* * *
4. Portanto, embora a pessoa que
esteja no caminho precise fazer uso do Entendimento Correto, ele ou ela
transcendem todos os entendimentos ao alcançar o objetivo da libertação. Para
uma pessoa que atingiu o objetivo, a experiência ocorre sem que um 'sujeito' ou
'objeto' esteja sobreposto a esta, sem a interpretação da experiência ou
daquilo que é experimentado. O que existe é a experiência em si mesma.
Bhikkhus, qualquer coisa neste mundo com os seus deuses, Maras e
Brahmas, as suas gerações com os seus contemplativos e sacerdotes, príncipes e
povo – que seja vista, ouvida, sentida, conhecida, alcançada, procurada,
ponderada pelo intelecto: Isso eu conheço. Qualquer coisa neste mundo… que seja
vista, ouvida, sentida, conhecida, alcançada, procurada, ponderada pelo
intelecto: isso eu conheço diretamente. Isso é do conhecimento do Tathagata,
mas o Tathagata não ficou obcecado com isso....
Portanto,
bhikkhus, o Tathagata, quando vê o que é para ser visto, ele não interpreta um
objeto visto. Ele não interpreta um objeto não visto. Ele não interpreta um
objeto para ser visto. Ele não interpreta quem vê.
Quando ouve…quando sente…quando conhece o que é para ser conhecido, ele
não interpreta um objeto conhecido. Ele não interpreta um objeto não conhecido.
Ele não interpreta um objeto para ser conhecido. Ele não interpreta quem
conhece.
Portanto, bhikkhus, o Tathagata – sendo tathata [1] com relação a todos os fenômenos que podem ser vistos, ouvidos,
sentidos e conhecidos - é 'Tathata'. E eu lhes digo: Não existe nenhum outro
'Tathata' mais elevado ou sublime.
Qualquer coisa que seja vista ou ouvida, ou sentida
e que seja tomada como verdadeira pelos outros,
Aquele que é Tathata - entre aqueles atados ao eu -
não assumiria ser verdadeira ou mesmo falsa.
Tendo visto com bastante antecipação aquela flecha
à qual gerações estão atadas e penduradas
- 'Eu sei, eu vejo, isto é exatamente como é!' -
Não há nada do Tathagata que esteja atado.
- AN IV.24
Uma idéia é verdadeira ou falsa
apenas quando alguém julga com que precisão ela se refere a outra coisa. Se
alguém a considera simplesmente como uma afirmação, um evento em si mesmo,
verdadeiro ou falso já não se aplica. Portanto para o Tathagata que nas
experiências não impõe noções de sujeito e objeto e considera visões, sons,
sensações e pensamentos exclusivamente em si mesmos, as idéias não são nem
verdadeiras nem falsas, mas apenas fenômenos a serem experimentados. Sem a
noção de sujeito, não existe base para "Eu sei, eu vejo", sem a noção
de objeto, não existe base para, "Isto é exatamente como é". Idéias
sobre o verdadeiro, falso, eu, não-eu, etc., perdem dessa forma todo o seu
poder de controle e a mente fica livre para ser Tathata: intacta, sem estar
influenciada por nada de nenhuma forma.
Isso, diz o sábio, é um grilhão,
Na dependência do que
A pessoa vê os outros como inferiores.
- Sn IV.5
Quem quer que interprete
'igual'
'superior' ou
'inferior',
por isso ele discutiria;
Enquanto que para aquele que não está influenciado por esses três,
'igual'
'superior'
não ocorrem.
De que diria o brâmane (arahant) 'verdadeiro'
ou 'falso',
discutindo com quem,
nele em quem 'igual' e 'diferente' não existem....
Tal como a lótus espinhosa
não está manchada pela água e lama,
Assim também o sábio,
um expoente da paz,
sem desejo,
não está manchado pela sensualidade e pelo mundo.
Quem alcançou a sabedoria
não é medido,
fica orgulhoso,
pelas idéias ou pelos pensamentos,
pois ele não se altera com eles.
Nem por rituais ele é conduzido, nem pela sabedoria tradicional,
nem por dogmas.
Para aquele que tem desapego em relação à percepção,
não existem vínculos;
para quem está liberto pelo discernimento,
não há delusões.
Aqueles que se agarram às percepções e idéias
permanecem discutindo no mundo.
- Sn IV.9
“Então
o Mestre Gotama não apóia nenhuma opinião especulativa?”
“
Vaccha, ‘opinião especulativa’ é algo que o Tathagata colocou de lado. Pois o Tathagata,
Vaccha, viu isso: ‘Assim é a forma material, assim é a sua
origem, assim é o seu desaparecimento; assim é a sensação, assim é a sua
origem, assim é o seu desaparecimento; assim é a percepção...assim são as
formações...assim é a consciência, assim é a sua origem, assim é o seu
desaparecimento’. Então, eu digo, com a destruição, desaparecimento, cessação,
desistência e abandono de toda a concepção de idéias, de todas as invenções, de
todas as fabricações de um eu, de todas as fabricações de um meu e da tendência
subjacente para a presunção, o Tathagata está liberto através do desapego.”
- MN 72
Isto, bhikkhus, o Tathagata discerne. E ele discerne que esses pontos de
vista, assim agarrados, assim apegados, conduzem a tal e tal destino, para tal
e tal estado num outro mundo . E ele discerne o que supera isso. E mesmo
discernindo isso, ele não se agarra a isso. E como ele não está se apegando a
isso, o desatamento (nibbuti) é experimentado. Entendendo, como na verdade
são, a origem, o fim, a recompensa e os perigos das sensações, juntamente com a
emancipação das sensações, o Tathagata, bhikkhus - através da ausência de
sustentação/apego - está liberto
-- D 1
Quer estes quatro
argumentos sejam ou não fiéis aos ensinamentos do Buda, é importante lembrar o
seu objetivo principal ao apresentar a doutrina do não-eu: para que aqueles que
a utilizam possam obter a libertação do sofrimento e estresse.
“Bhikkhus, vocês até podem se agarrar a essa doutrina do eu que não faça
surgir a tristeza, lamentação, dor, angústia e desespero naquele que nela se
agarre. Mas vocês conseguem ver alguma doutrina do eu como essa
bhikkhus?”
“Não venerável senhor”
“...Eu também não consigo...Bhikkhus, o que vocês pensam? Se as pessoas
levassem embora a grama, gravetos, galhos e folhas deste bosque de Jeta ou se
os queimassem, ou fizessem com eles o que desejassem, vocês pensariam: ‘As
pessoas estão nos levando ou estão nos queimando, ou estão fazendo conosco o
que desejam?’
“Não, venerável senhor. Porque não? Porque isso não é nem nosso eu, nem
pertence ao nosso eu”.
“Da mesma forma, bhikkhus, tudo aquilo que não é de vocês, abandonem-lo.
Quando vocês o tiverem abandonado, isso será para o bem estar e felicidade de
vocês, por muito tempo. O que não é de vocês? A forma material não é de
vocês...A sensação não é de vocês...A percepção não é de vocês...As formações
não são de vocês...A consciência não é de vocês. Abandonem-la. Quando vocês a
tiverem abandonado, isso será para o bem estar e felicidade de vocês, por muito tempo.
- MN 22
O Ven. Sariputta disse: “ Amigos, em terras estrangeiras existem nobres
e sacerdotes, chefes de família e contemplativos – as pessoas que são sábias e
que sabem diferenciar – que questionarão um bhikkhu: ‘Qual é a doutrina do seu
mestre? O que ele ensina?' Assim perguntados vocês devem responder, ‘Nosso
mestre ensina a subjugar a paixão e o desejo.'
"...paixão e desejo pelo que?"
"...paixão e desejo pela forma, sensação, percepção, fabricações e
consciência."
"...vendo qual perigo (ou desvantagem) o seu mestre ensina a
subjugar a paixão e desejo pela forma, sensação, percepção, fabricações e
consciência?"
"...quando uma pessoa não está livre da paixão, desejo, amor, sede,
febre e ambição pela forma, etc., então, por qualquer mudança e alteração nessa
forma, etc., surge a tristeza, lamentação, dor, angústia e desespero."
"...e vendo qual benefício o seu mestre ensina a subjugar a paixão
e desejo pela forma, etc.?"
"...quando uma pessoa está livre da paixão, desejo, amor, sede,
febre e ambição pela forma, etc., então por qualquer mudança e alteração nessa
forma, etc., não surge a tristeza, lamentação, dor, angústia e desespero."
Ambos, antes e agora, Anuradha, é só o sofrimento que eu descrevo e a
cessação do sofrimento.
- SN XXII.86
Nota do tradutor
[1] Tathata pode ser
interpretado como “assim, tal como, dessa forma.” As coisas como elas na
verdade são, ao invés do que aparentam ser [Retorna]
Revisado: 17 Agosto 2002