Início >> 5. O Kamma que dá fim ao Kamma >> 7. Conclusão
Quem provoca a felicidade e o sofrimento?
Crenças que são contrárias à lei de Kamma
Kamma e ‘não eu’ são contraditórios?
De acordo com as palavras do Buda, “Através da ignorância, as ações corporais...ações verbais...ações mentais...são criadas, com o consentimento próprio...através de influências externas...com conhecimento...sem conhecimento.” Existem também circunstâncias em que o Buda refutava, tanto a teoria de que toda felicidade e sofrimento são provocados pelo eu (conhecida como attakaravada) como a de que toda felicidade e sofrimento são provocados por forças externas (conhecida como arakaravada). Isso destaca a necessidade de ver kamma em sua relação com o fluxo completo de causa e efeito. O grau de qualquer intervenção, quer seja própria ou de fatores externos, deve ser considerado em relação a esse processo. De outro modo surgirá o mal-entendido corriqueiro de que todos os eventos são causados pelas ações pessoais, excluindo todo o restante.
O que precisa ser compreendido é a diferença entre kamma no contexto das leis da natureza e kamma no contexto da ética. Ao falar de kamma como uma lei da natureza, um processo que existe na natureza e que incorpora uma grande variedade de fatores condicionantes, nós não superenfatizamos o papel da ação individual, assim, dizemos que kamma não é a única causa da felicidade e sofrimento. Mas no nível da ética, o ensinamento de kamma é para ser usado na prática. Por conseguinte, a responsabilidade total é colocada sobre o indivíduo. Isso é enfatizado pelas palavras do Buda no Dhammapada, “Seja um refúgio para você mesmo.”
Além de querer dizer que devemos ajudar a nós mesmos, essa injunção também inclui nosso relacionamento quando ajudados por outros. Isto é, mesmo na eventualidade de uma ajuda surjir de fontes externas, ainda assim, seremos responsáveis pela aceitação dessa ajuda em todos ou pelo menos, algum dos três níveis seguintes : (a) Na solicitação, quer seja intencional ou não, quer seja consciente ou não, de tal ajuda; (b) Ao encorajar tal ajuda por meio de comportamento apropriado; (c) E no mínimo, na aceitação de tal ajuda. Por essa razão, não há conflito entre o princípio de kamma no nível das leis da natureza e no nível da ética, mas na verdade eles suportam um ao outro.
Existem três filosofias que o Budismo considera ser entendimento incorreto e que devem ser distinguidas com cuidado dos ensinamentos de kamma:
1. Pubbekatahetuvada: A crença de que toda felicidade e sofrimento surgem do kamma passado (Determinismo das ações passadas).
2. Issaranimmanahetuvada: A crença de que toda felicidade e sofrimento são causados pelas diretrizes de um Ser Superior (Determinismo teísta).
3. Ahetu-apaccayavada: A crença de que toda felicidade e sofrimento são aleatórios, não tendo uma causa (Indeterminismo ou Acidentalismo).
Com relação a isso, temos as palavras do Buda:
“Bhikkhus, existem esses três tipos de associações sectárias que – quando questionadas, pressionadas em dar suas razões e censuradas por pessoas sábias – embora possam dar uma explicação contrária, permanecem presas a (uma doutrina de) inércia. Quais três?
1. “Existem sacerdotes e contemplativos que acreditam nesse ensinamento, que pensam dessa maneira: ‘Qualquer que seja a experiência de uma pessoa – prazerosa, dolorosa ou neutra – tudo tem sua causa no que foi feito no passado.’
2. “Existem sacerdotes e contemplativos que acreditam nesse ensinamento, que pensam dessa maneira: ‘Qualquer que seja a experiência de uma pessoa – prazerosa, dolorosa ou neutra – tudo tem sua causa no ato de criação de um ser superior.’.
3. “Existem sacerdotes e contemplativos que acreditam nesse ensinamento, que pensam dessa maneira: ‘Qualquer que seja a experiência de uma pessoa – prazerosa, dolorosa ou neutra – tudo não tem uma causa e condição.’
“Tendo me aproximado dos sacerdotes e contemplativos que acreditam....qualquer que seja a experiência de uma pessoa...tudo tem sua causa no que foi feito no passado. ‘Eu lhes digo : ‘É verdade que vocês acreditam ...qualquer que seja a experiência de uma pessoa...tudo tem sua causa no que foi feito no passado?’ Tendo sido inquiridos dessa forma por mim, eles admitem, ‘Sim.’ Então lhes digo, ‘Então nesse caso, uma pessoa é uma assassina de seres vivos, pelo que foi feito no passado. Uma pessoa é uma ladra...impura...mentirosa...que causa desarmonia pelo que fala...rude no que fala...tagarela...ambiciosa...maliciosa...que tem entendimento incorreto por causa do que foi feito no passado.’
“Bhikkhus, quando uma pessoa retrocede ao que foi feito no passado como sendo essencial, não existe desejo, não existe esforço [em relação ao pensamento] , ‘Isto deve ser feito. Isto não deve ser feito.’ Quando a pessoa não consegue identificar com clareza, como verdade ou realidade, o que deve e o que não deve ser feito, permanece num estado confuso e desprotegido. Essa pessoa não pode referir-se a si mesma com justiça como uma contemplativa. Essa foi minha primeira refutação irrepreensível a esses sacerdotes e contemplativos que acreditam nesse ensinamento, que pensam dessa maneira.
“Tendo me aproximado dos sacerdotes e contemplativos que acreditam....qualquer que seja a experiência de uma pessoa...tudo tem sua causa no ato de criação de um ser superior . ‘Eu lhes digo : ‘É verdade que vocês acreditam ...qualquer que seja a experiência de uma pessoa...tudo tem sua causa no ato de criação de um ser superior?’ Tendo sido inquiridos dessa forma por mim, eles admitem, ‘Sim.’ Então lhes digo, ‘Então nesse caso, uma pessoa é uma assassina de seres vivos pelo ato de criação de um ser superior. Uma pessoa é uma ladra... impura... mentirosa... que causa desarmonia pelo que fala... rude no que fala... tagarela... ambiciosa... maliciosa... que tem opiniões equivocadas por causa do ato de criação de um ser superior.’
“Bhikkhus, quando uma pessoa retrocede ao ato de criação de um ser superior como sendo essencial, não existe desejo, não existe esforço [em relação ao pensamento] , ‘Isto deve ser feito. Isto não deve ser feito.’ Quando a pessoa não consegue identificar com clareza, como verdade ou realidade, o que deve e o que não deve ser feito, permanece num estado confuso e desprotegido. Essa pessoa não pode referir-se a si mesma com justiça como uma contemplativa. Essa foi minha segunda refutação irrepreensível a esses sacerdotes e contemplativos que acreditam nesse ensinamento, que pensam dessa maneira.
“Bhikkhus, quando uma pessoa retrocede a uma ausência de causa e condição como sendo essencial, não existe desejo, não existe esforço ..."[AN.I.73] (AN.III.62)
A primeira dessas três escolas de pensamento é a dos Niganthas, da qual podemos aprender algo mais das palavras do Buda:
“Bhikkhus, existem alguns contemplativos e brâmanes que possuem a seguinte doutrina e entendimento: ‘Qualquer coisa que uma pessoa sinta, quer seja prazer ou dor, ou nem prazer, nem dor, tudo é causado pelo que foi feito no passado. Então aniquilando através do ascetismo as ações passadas e não cometendo novas ações, não haverá conseqüência no futuro. Sem conseqüência no futuro, ocorre a destruição da ação. Com a destruição da ação, ocorre a destruição do sofrimento. Com a destruição do sofrimento, ocorre a destruição da sensação. Com a destruição da sensação, todo o sofrimento será extinto.’ Assim dizem os Niganthas, bhikkhus.” [MN.II.214] (MN 101)
As palavras do Buda a seguir ilustram com clareza o ponto de vista Budista:
“Produzidas por distúrbios da bílis, Sivaka, surgem certos tipos de sensações. Que isso acontece, pode ser compreendido pela própria pessoa e também no mundo é aceito como verdadeiro. Produzidas por distúrbios do muco…dos ventos…desses três combinados…pela mudança de clima…pelo comportamento adverso…por ferimentos…pelos resultados de Kamma – por meio de tudo isso, Sivaka, surgem certos tipos de sensações. Que isso acontece, pode ser compreendido pela própria pessoa e também no mundo é aceito como verdadeiro.
“Agora, quando esses contemplativos e brâmanes possuem esta doutrina e entendimento: ‘Tudo aquilo que uma pessoa experimenta, quer seja prazer, dor, ou nem prazer, nem dor, tudo é causado pelas ações passadas,’ então eles vão além daquilo que conhecem por si mesmos e daquilo que é aceito no mundo como verdadeiro. Portanto, eu digo que esses contemplativos e brâmanes estão equivocados.” [ SN.IV.230] (SN.XXXVI.21)
Essas palavras nos desencorajam ir longe demais com o kamma, ao considerá-lo como uma coisa totalmente do passado. Esse tipo de idéia encoraja a inércia; esperar de forma passiva que os resultados do kamma passado amadureçam, aceitando as coisas como elas vêm, sem pensar em corrigí-las ou melhorá-las. Esse é um tipo de entendimento incorreto, prejudicial, como pode ser visto pelas palavras do Buda mencionadas acima.
De modo significativo, no trecho acima, o Buda declara o esforço e a motivação como fatores cruciais na decisão sobre o valor ético de cada um desses vários ensinamentos sobre kamma.
O Buda não descartava a importância do kamma passado, porque este desempenha um papel no processo de causa e efeito que, portanto, tem um efeito no presente e por sua capacidade como um dos fatores condicionantes. Mas, é apenas uma dessas condições, não é uma força sobrenatural à qual temos que nos agarrar ou submeter passivamente. A compreensão do Princípio da Origem Dependente e do processo de causa e efeito irá esclarecer isso.
Por exemplo, se um homem subir até o terceiro andar de um prédio, é verdade, de modo inegável, que o fato de ele ter chegado ao terceiro andar é o resultado de uma ação passada – isto é, ter subido as escadas. Tendo chegado lá, é impossível que ele possa esticar a mão e tocar o solo, ou dirigir um carro. Obviamente, isso é assim porque ele subiu até o terceiro andar. Ou, ao chegar ao terceiro andar, se ele estiver demasiado exausto para continuar é algo que também está relacionado com o fato dele ter subido as escadas. Sua chegada lá, as coisas que ele será capaz de fazer e as situações que poderá encontrar, tudo isso está com certeza relacionado ao “kamma passado” de ter subido as escadas. Mas, exatamente quais ações ele irá tomar, as reações dele em relação às situações que enfrentará, se ele irá descansar ou seguir subindo, ou descer as escadas de volta e sair do prédio, são todos temas que ele pode decidir por ele mesmo naquele momento, e pelas quais ele também irá colher os resultados. Muito embora a ação de subir as escadas ainda pudesse estar influenciando (por exemplo, com as forças exauridas ele poderá ser incapaz de funcionar de forma eficiente numa dada situação), se ele decidir ceder a esse cansaço ou se tentar superá-lo são questões que ele pode decidir por ele mesmo no presente momento.
Assim, o kamma passado deve ser compreendido em relação a todo o processo de causa e efeito. Em relação ao comportamento ético, compreender o processo de causa e efeito é ser capaz de aprender com o kamma passado, compreender a situação no presente e com habilidade elaborar um plano de ação para melhorar e preparar para o futuro.
Certa vez o Buda disse:
“Bhikkhus, para qualquer um que diga, 'Qualquer que seja a forma pela qual uma pessoa faça kamma, é deste modo que ele será experimentado,’ não existe a vida santa, não existe oportunidade para o correto fim do sofrimento. [11]
“Mas para qualquer um que diga, ‘quando uma pessoa faz kamma para ser sentido de tal e tal forma, é deste modo que o seu resultado é experimentado,’ existe a vida santa, existe oportunidade para o correto fim do sofrimento.
“Existe o caso em que um ato insignificante cometido por um certo indivíduo o conduz ao inferno. Existe o caso em que mesmo tipo de ato insignificante cometido por outro indivíduo é experimentado no aqui e agora e aparece apenas por um momento.
“Agora, um ato insignificante cometido por qual tipo de indivíduo o conduz ao inferno? É o caso em que um certo indivíduo é rudimentar na [meditação] do corpo, rudimentar em virtude, rudimentar na mente, rudimentar em discernimento: restrito, mesquinho, convivendo com o sofrimento. Um ato insignificante cometido por este tipo de indivíduo o conduz ao inferno (como um cristal de sal em uma taça de água).
“Agora, um ato insignificante cometido por qual tipo de indivíduo é experimentado no aqui e agora e aparece apenas por um momento? É o caso em que um certo indivíduo é desenvolvido na [meditação] do corpo, desenvolvido em virtude, desenvolvido na mente, desenvolvido em discernimento: sem restrições, generoso, convivendo com o ilimitado. Um ato insignificante cometido por esse tipo de indivíduo é experimentado no aqui e agora e aparece apenas por um momento (como um cristal de sal em um rio). [ AN.I.249] (AN.III.101)
* * *
“Ouça, chefe de família, alguns mestres ensinam e possuem o entendimento que aqueles que matam seres vivos devem sem exceção ir para os estados de privação, o inferno; que aqueles que roubam devem sem exceção ir para os estados de privação, o inferno; que aqueles que cometem atos sexuais ilícitos devem sem exceção ir para os estados de privação, o inferno; que aqueles que mentem devem sem exceção ir para os estados de privação, o inferno. Os discípulos desses mestres, pensando, ‘Nosso mestre ensina e possui o entendimento que aqueles que matam seres vivos devem sem exceção ir para os estados de privação, o inferno,’ concebem a seguinte idéia, ‘Eu matei seres vivos. Portanto eu, também, devo ir para o inferno.’ Não renunciando a essa linguagem e a essa idéia, ele de fato vai para o inferno, como se fosse empurrado para lá à força.
“Quanto ao Tathagata, um Buda plenamente iluminado, ele surge no mundo...Ele censura matar seres vivos... roubar... atos sexuais ilícitos... mentir, sob muitas formas, e ensina, ‘Matar seres vivos... roubar... atos sexuais ilícitos... mentir deve ser abandonado.’ Um discípulo do Mestre, refletindo desta forma, ‘O Abençoado censura matar seres vivos...sob muitas formas, e ensina o abandono de matar seres vivos. Eu já matei muitos seres vivos. Essa matança de seres vivos que cometi não é boa, não é digna. Eu sofrerei por conta dessas ações, e por conta delas eu não estarei além da crítica.’ Refletindo dessa forma, ele abandona matar seres vivos, e é um dos que abandonou matar seres vivos a partir daquele momento. Assim ele abandona aquele kamma ruim ...
“Ele abandona matar seres vivos... a linguagem mentirosa... linguagem maliciosa... linguagem rude... linguagem frívola... cobiça... inimizade... entendimento incorreto. Ele está dotado de Entendimento Correto, ele é um Nobre Discípulo com a mente livre do desejo, livre da aversão, não deludido, com a mente liberta e atenção plena firmemente estabelecida. Ele permanece com a mente plena de boa vontade, difundindo para a primeira... segunda... terceira... todas as quatro direções, acima, abaixo, difundindo para todo o mundo, para todos os seres em todos os lugares, com uma mente plena de boa vontade que é expansiva, sublime, ilimitada, livre de inimizade e má vontade. Tendo desenvolvido de forma tão completa a libertação da mente por meio da boa vontade, qualquer medida moderada de kamma realizado no passado não irá mais se manifestar...” [SN.IV.319]
As palavras acima foram mencionadas de forma a prevenir mal-entendidos em relação à fruição de kamma. Esta síntese é apenas uma pequena parcela do material disponível, para apresentá-lo todo ocuparia espaço demasiado.
Existe uma questão que, embora só perguntada poucas vezes, tende a persistir nas mentes de muitos principiantes no estudo do Budismo: “Os ensinamentos de kamma e não-eu são contraditórios?” Se tudo, incluindo o corpo e a mente, é não-eu, então como pode existir kamma? Quem é aquele que pratica kamma? Quem recebe os resultados de kamma? Essas dúvidas não são apenas um fenômeno da época em que vivemos, mas existiu desde a época do Buda, como pode ser visto do exemplo a seguir:
Então, na mente de um certo bhikkhu surgiu este pensamento: “Portanto, parece que, a forma material não é o eu, a sensação não é o eu, a percepção não é o eu, as formações não são o eu, a consciência não é o eu [12]. Qual o eu então, que é afetado por ações praticadas pelo não eu?”
Então o Abençoado, conhecendo o pensamento na mente daquele bhikkhu, dirigiu-se aos bhikkhus da seguinte forma:
“É possível, bhikkhus, que alguma pessoa desencaminhada que aqui está, obtusa e ignorante, com a sua mente dominada pelo desejo, possa pensar que ela pode superar a Doutrina do Mestre desta forma: ‘Portanto, parece que, a forma material não é o eu...a consciência não é o eu. Qual o eu então, que é afetado por ações praticadas pelo não eu?’ Agora, bhikkhus, vocês foram treinados por mim através de interrogações em várias ocasiões em relação a várias coisas.
“Bhikkhus, o que vocês pensam? A forma material é permanente ou impermanente?” – “Impermanente, venerável senhor”. – “Aquilo que é impermanente traz o sofrimento ou a felicidade?” – “Sofrimento, venerável senhor”. – “É adequado que aquilo que é impermanente, traz o sofrimento e está sujeito à mudança, seja considerado desta forma: ‘Isto é meu, isso sou eu, esse é o meu eu’?” – “Não venerável senhor”.
“Bhikkhus, o que vocês pensam: A sensação...percepção...formações...consciência são permanentes ou impermanentes?” – “Impermanentes venerável senhor”. - “Aquilo que é impermanente traz o sofrimento ou a felicidade?” – “Sofrimento, venerável senhor”. – “É adequado que aquilo que é impermanente, traz o sofrimento e está sujeito à mudança, seja considerado desta forma: ‘Isto é meu, isso sou eu, esse é o meu eu’?” – “Não venerável senhor”.
Portanto, bhikkhus, qualquer tipo de forma material, quer seja do passado, do futuro ou do presente...toda forma material deve ser vista como na verdade ela é, com sabedoria apropriada, desta forma: ‘Isso não é meu, isso não sou eu, isso não é o meu eu’. Qualquer tipo de sensação... Qualquer tipo de percepção... Qualquer tipo de formações... Qualquer tipo de consciência... toda consciência deve ser vista como na verdade ela é, com sabedoria apropriada, desta forma: ‘Isso não é meu, isso não sou eu, isso não é o meu eu’. “Vendo dessa forma um nobre discípulo bem instruído se desencanta com a forma material, se desencanta com a sensação, se desencanta com a percepção, se desencanta com as formações, se desencanta com a consciência. Desencantado, ele se torna desapegado. Através do desapego a sua mente é liberada. Quando ela está liberada surge o conhecimento: ‘Liberta.’ Ele compreende que: ‘O nascimento foi destruído, a vida santa foi vivida, o que deveria ser feito foi feito, não há mais vir a ser a nenhum estado’” [MN.III.19] (MN 109)
Antes de examinar essa alusão das escrituras, considere a seguinte ilustração: Suponha que estejamos em pé à margem de um rio, olhando a correnteza passar. A água flui em uma área na sua maior parte plana, por conseguinte a correnteza é bastante lenta. A terra naquela área particular é vermelha, o que proporciona àquele corpo d ´água uma coloração avermelhada. Além disso, a água passa por regiões densamente povoadas nas quais as pessoas já há muito tempo despejam lixo, que, junto com o esgoto industrial que flui de várias fábricas recém-construídas, polui a água. A água é portanto inabitável para a maioria dos animais; não há muitos peixes nela. Em resumo, o corpo d´água que estamos vendo é avermelhado, poluído, pouco habitado e lerdo. Todos esses aspectos em conjunto são as características deste corpo d´água em particular. Algumas dessas características podem ser semelhantes a outros rios, mas a soma total dessas características é única dessa corrente d´água.
Somos informados que atualmente esse corpo d´água é chamado de Rio Tah Wung. Diferentes pessoas empregam formas distintas para descrevê-lo. Algumas dizem que o Rio Tah Wung é sujo e não tem muitos peixes. Outras dizem que o Rio Tah Wung flui muito lentamente. Outras, ainda, dizem que o Rio Tah Wung é avermelhado.
Em pé, à margem do rio, temos a impressão que o corpo d´água para o qual estamos olhando é na verdade completo por si mesmo. Os seus atributos, como ser lento, avermelhado, sujo, e assim por diante, são todos causados por vários fatores condicionantes, tal como a correnteza entrando em contato com a terra vermelha. Além disso, a água para a qual estamos olhando está fluindo constantemente. A água que vimos no início já não está mais ali e a água que estamos vendo agora irá passar logo. Mesmo assim, o rio possui as suas características próprias, que não mudam enquanto os fatores condicionantes relevantes não mudarem.
Mas, então, nos dizem que esse é o Rio Tah Wung. Não apenas isso, nos dizem que o Rio Tah Wung é lento, sujo e com poucos peixes. Se apenas olharmos, não podemos ver nenhum “Rio Tah Wung” que não seja esse corpo d´água fluindo. Não podemos ver nenhum “Rio Tah Wung” de posse desse corpo d´água. No entanto, nos dizem que o Rio Tah Wung desmancha a terra vermelha ao passar, o que faz com que a água fique avermelhada. É quase como se o “Rio Tah Wung” fizesse alguma coisa para a terra vermelha, que desse motivo para ela “puní-lo” avermelhando a sua água.
Podemos ver com clareza que esse corpo d´água está sujeito ao processo de causa e efeito governado pelos seus vários fatores condicionantes: a água molhando a terra vermelha e a terra vermelha dissolvendo na água é uma condição causal, cujo resultado é a água avermelhada. Não podemos encontrar nenhum “corpo” fazendo algo ou recebendo algum resultado. Não podemos ver nenhum Rio Tah Wung com substância em nenhum lugar. A água fluindo à nossa frente segue fluindo, a água que vimos antes não mais se encontra ali, águas novas estão constantemente tomando o lugar das anteriores. Somos capazes de definir aquele corpo d´água apenas por meio da descrição dos seus fatores condicionantes e dos eventos que surgem como conseqüência, resultando nas características que havíamos observado. Se houvesse um Rio Tah Wung verdadeiro e imutável, seria impossível para aquele fluxo d´água continuar de acordo com os seus vários fatores determinantes. Por fim, vemos que o termo “Rio Tah Wung” é desnecessário. Podemos falar sobre aquele corpo d´água sem ter que nos preocuparmos com esse “Rio Tah Wung.” A verdade é que não existe um Rio Tah Wung de fato!
À medida que o tempo passa nós viajamos para uma outra região. Desejando descrever aquele corpo d´água que vimos para as pessoas dessa região, ficamos perdidos. Então nos lembramos de alguém ter dito que aquele corpo d´água era conhecido como o Rio Tah Wung. Sabendo disso, podemos relatar nossa experiência de forma clara e as outras pessoas irão ouvir com interesse e atenção. Nós lhes relatamos que o Rio Tah Wung tem a água suja, não tem muitos peixes, é lento e com a coloração avermelhada.
Naquele momento compreendemos, de forma clara, que aquele “Rio Tah Wung” e o papel que ele desempenha nos eventos que descrevemos são simples convenções de linguagem usadas para facilitar a comunicação. Quer a convenção “Rio Tah Wung” exista ou não, quer a usemos ou não, não terá absolutamente nenhuma influência nas ações daquele corpo d´água. Aquele corpo d´água continua a ser um processo de reações inter-relacionadas de causa e efeito. Podemos distinguir com clareza entre a convenção e a situação verdadeira. Agora somos capazes de compreender e empregar a convenção da linguagem com tranqüilidade.
Aquilo que de forma convencional conhecemos como pessoas, às quais damos nomes, e que nos referimos como “eu” e “você,” são na realidade fluxos contínuos e interconectados de eventos, formados de incalculáveis fatores componentes relacionados, igual à água daquele rio. Eles estão sujeitos a inúmeros fatores, são dirigidos por fatores determinantes relacionados, tanto de dentro do fluxo de eventos, como de fora. Quando uma reação em particular ocorre de forma causal, o fruto dessa ação surge causando mudanças dentro do fluxo de eventos.
As condições referidas como kamma e vipaka são simplesmente o jogo de causa e efeito dentro de um fluxo de eventos em particular. Elas são perfeitamente capazes de funcionar dentro daquele fluxo sem a necessidade das convenções de nomes ou das palavras “eu” e “você,” quer seja como donos ou perpetradores daquelas ações, ou como receptores dos seus resultados. Isso é a realidade, [13] que funciona naturalmente dessa forma. Mas para facilitar a comunicação no mundo social, precisamos usar a convenção de nomes, tal como Sr. Smith, e assim por diante, para um fluxo de eventos em particular.
Aceita a convenção, temos que aceitar a responsabilidade por aquele fluxo de eventos, tornando-nos o proprietário, o perpetrador ativo e o sujeito passivo das ações e dos seus resultados, conforme seja o caso. Mas, quer usemos essas convenções ou não, quer aceitemos os rótulos ou não, o fluxo de eventos em si funciona de todos os modos, dirigido pela causa e efeito. O ponto importante é ter consciência das coisas como elas na verdade são, distinguindo entre as convenções e a própria condição. A mesma coisa, no contexto da sua verdadeira natureza, é de um jeito, mas quando mencionada em termos convencionais deve ser referida de outro jeito. Se tivermos a compreensão da realidade dessas coisas não seremos deludidos ou confundidos pelas convenções.
Ambas a realidade e as convenções são necessárias. A realidade (com freqüência mencionada como paramattha) é o estado natural. As convenções são uma invenção humana útil e prática. Os problemas surgem quando confundimos as duas, apegando-nos à realidade e tentando fazer com que esta siga as convenções. No interior da realidade não há confusão, porque o princípio opera por si mesmo de forma natural não estando sujeito às idéias que alguém possa ter a seu respeito – são as pessoas que ficam confusas. E como a realidade não é confusa, funcionando independentemente dos desejos das pessoas, ela frustra aqueles desejos e faz com que as pessoas fiquem ainda mais confusas e frustradas. Qualquer problema que ocorra é um problema apenas humano.
Como pode ser observado no trecho acima, o bhikkhu, que formulou essa dúvida, estava confundindo a descrição da realidade que ele havia aprendido com a convenção à qual ele ainda estava apegado. Essa foi a razão da sua confusão e dúvida. Referindo-se ao texto original, as palavras empregadas foram: “Se o kamma é criado pelo não eu, qual eu recebe os frutos de kamma?” A primeira parte da frase é dita de acordo com o conhecimento adquirido da realidade, enquanto que a segunda parte é dita de acordo com a sua percepção habitual. Evidentemente elas não se encaixam.
Do que foi mencionado até agora, podemos resumir o seguinte:
Quando há um acordo para chamar aquele fluxo de eventos de Sr. Smith ou Sra. Brown, surge um dono das ações, um agente e um recebedor dos resultados. No entanto, o fluxo dos eventos segue independente disso, completamente perfeito no seu interior no que diz respeito ao processo de causa e efeito. Este não depende de nomes para funcionar.
Quando é o momento de falar do contexto do fluxo de eventos, descrevendo a sua operação, as suas causas e resultados, então podemos falar desse modo. Quando for o momento de falar do contexto das convenções, descrevendo as ações e os frutos das ações em termos pessoais, também podemos falar desse modo. Com o entendimento correto, nós não confundimos os dois níveis.
Mesmo em relação a objetos inanimados, tal como o rio mencionado acima, a maioria das pessoas ainda assim se apega a convenções como se fossem entidades verdadeiras. Tanto mais quando se trate de seres humanos, que são uma confluência intrincada de processos causais, envolvendo fatores mentais. Quanto a esses fatores mentais, eles são extremamente sutis. Mesmo a impermanência é incompreensível para muitas pessoas. Existem aqueles, por exemplo, que dizem “Quem diz que a memória é impermanente e instável? A memória é permanente, porque sempre e quando ela surge, é sempre memória, nunca muda.”
Algumas pessoas podem concordar com essa linha de raciocínio, mas se o argumento for aplicado a um objeto material, o engano se tornará mais óbvio. É como dizer, “Quem diz que o corpo é impermanente? O corpo é permanente e imutável, porque sempre e quando o corpo surge, é sempre corpo, nunca muda.” É mais fácil ver o erro neste último argumento, mas na verdade ambos argumentos estão equivocados. Isto é, ambos confundem a memória com o rótulo “memória,” ou o corpo com o rótulo “corpo.” Os argumentos sugerem que a memória e o corpo são estáveis e imutáveis, mas na verdade o que elas estão dizendo é que os nomes “memória” e “corpo” são (relativamente) estáveis e imutáveis.
O estudo da lei de kamma só no nível das convenções pode conduzir algumas vezes a uma visão simplista das coisas, tal como crer que uma certa pessoa tendo cometido tal e qual kamma, em tal e qual dia, dez anos mais tarde receberá tal e qual resultado ruim. O processo de causa e efeito em questão salta um intervalo de dez anos num passo. O fluxo total de eventos envolvidos não é tomado em conta, e assim é difícil ver o processo real em questão. Estudando o mesmo caso em relação ao fluxo natural de eventos ajuda a ver a operação das relações de causa e efeito de forma mais completa e em maior detalhe, revelando o real significado dos resultados que tenham surgido e como eles surgem.
Suponha que um certo Sr. Brown tenha uma discussão com o seu vizinho e o mate. Embora ele procure fugir, no final das contas ele é preso e condenado. Mais tarde, mesmo depois de ter sido libertado ao final da sua pena de prisão, o Sr. Brown ainda sente remorso por conta da sua má ação. Ele é atormentado com freqüência pela imagem da sua vítima. As suas feições e porte físico mudam, tornando-se agitado, temeroso e depressivo. Esses estados mentais, combinados com o seu forte porte físico, juntos, fazem com que ele se torne ainda mais violento e irado. À medida que o tempo passa os seus traços físicos assumem características grosseiras e hostis. Ele esconde o seu sofrimento com o comportamento agressivo, tornando-se um perigo para a sociedade e para ele mesmo, incapaz de encontrar a verdadeira felicidade.
Neste exemplo, podemos simplesmente dizer que o Sr. Brown cometeu kamma ruim e está sofrendo os resultados das suas ações. Esta é a linguagem convencional, e é compreendida com facilidade pela maioria das pessoas. É uma forma de comunicação que facilita o intercâmbio de idéias, mas apenas descreve a aparência externa das coisas ou os resultados mais grosseiros dos fatores relevantes que estão ocultos no seu interior. Não penetra a verdadeira essência do assunto, dos fatores inter-relacionados que reagem de acordo com as leis da natureza.
No entanto, se falarmos baseados na realidade, poderemos falar da essência na sua totalidade, mencionando-a como um processo de eventos. Por exemplo, podemos dizer que como parte da operação do conjunto de cinco khandhas, surgiu um estado mental baseado na raiva. Na seqüência ocorreu a proliferação mental baseada naquela raiva, conduzindo à ação física. Pensando, dessa forma, com habitualidade, a mente passou a assumir essas tendências. As repercussões físicas de fontes externas foram experimentadas, somando-se à sensação desagradável e assim por diante.
Falando, dessa maneira, de acordo com as condições, nós temos toda a informação necessária sem ter que fazer referência ao Sr. Brown ou qualquer outro tipo de eu. O processo contém em si mesmo elementos naturais de vários tipos surgindo e reagindo uns com os outros para produzir ações e reações, sem a necessidade de um agente ou recebedor dos resultados.
Quer seja falando de acordo com as condições tal como mencionado acima ou de acordo com as convenções como mencionado antes, a realidade da situação é idêntica – nenhuma das duas formas é deficiente ou mais completa – mas a descrição das coisas como uma condição da natureza é dada com base nos fatos naturais, sem os apêndices da imageria convencional.
De todo jeito, mesmo com esses exemplos, pode ainda haver alguma dúvida em relação ao assunto, então poderia ser de ajuda concluir com uma estória:
Tit Porng [14] foi visitar o Venerável Abade de um monastério vizinho. Em um dado momento, ele perguntou:
“Luang Por, o Buda ensinou que tudo é não eu, e sem um proprietário – não existe ninguém que realize kamma e ninguém para receber os seus resultados. Se esse é o caso, então eu posso sair e golpear alguém na cabeça ou até mesmo matá-lo, ou fazer o que eu quiser, porque não há ninguém realizando kamma e ninguém para receber os seus resultados.”
Tão pronto Tit Porng havia terminado de falar, a bengala do Abade, escondida da vista de Tit Porng, golpeou como um raio. Tit Porng mal foi capaz de erguer o braço para proteger-se do golpe. Mesmo assim, a bengala o atingiu bem no meio do braço causando uma boa contusão.
Agarrando o braço dolorido, Tit Porng disse, “Luang Por! Porque você fez isso?” Com a voz trêmula pela raiva que brotava dentro dele.
“Oh! Qual é o problema?” O Abade perguntou de modo despreocupado.
“Porque, você me golpeou! Isso dói!”
O Abade, empregando um tom de voz normalmente reservado para os sermões, murmurou lentamente: “Existe o kamma, mas ninguém criando-o. Existem resultados de kamma, mas ninguém para recebê-los. Existe a sensação, mas ninguém que a experimente. Existe a dor, mas ninguém que a sinta...Aquele que tente usar a lei do não-eu para benefício dos seus próprios propósitos egoístas não está liberto do eu; aquele que se apega ao não-eu é alguém que se apega ao eu. Ele na verdade não compreende não-eu. Aquele que se apega à idéia de que não há ninguém que cria kamma também se apega à idéia de que existe alguém que sente dor. Ele na verdade não compreende que não há ninguém que cria kamma e ninguém que sente a dor.”
Moral da estória: se você quiser dizer que “Não existe ninguém que cria kamma,” você precisa primeiro aprender a parar de dizer “Ai!”
Início >> 5. O Kamma que dá fim ao Kamma >> 7. Conclusão
Notas:
[11] Um exemplo deste tipo de crença: Se você destruir um cupinzeiro nesta vida, numa vida futura você inevitavelmente terá a sua casa destruída por aqueles mesmos cupins, quiçá renascidos como seres humanos. [Retorna]
[12] Os cinco khandhas, ou agregados da existência. [Retorna]
[13] A palavra “realidade” pode parecer um tanto arbitrária para aqueles não familiarizados com o Budismo. No contexto desta obra, podemos definí-la de forma mais clara como “o mundo natural separado dos apêndices das convenções humanas.” [Retorna]
[14] Tit Porng: “Tit” é um nome Tailandês para alguém que foi ordenado como bhikkhu durante algum tempo e mais tarde deixou de ser bhikkhu. “Luang Por,” significa, em termos literais, Venerável Pai, é um termo respeitoso empregado para veneráveis monges. [Retorna]
Revisado: 5 Outubro 2002
A versão original deste texto está em http://www.acessoaoinsight.net/arquivo_textos_theravada/kamma_6.htm