Início >> 4. O formato padrão>> 6. A Natureza das Contaminações

5. Outras Interpretações

 

Conteúdo:

Definição preliminar

Como os elos se conectam

            Exemplos

Um exemplo da Origem Dependente na vida cotidiana


A descrição da Origem Dependente dada no capítulo anterior é aquela encontrada com mais freqüência nas escrituras e comentários. Ela busca explicar a Origem Dependente como samsaravatta, o ciclo de renascimentos, mostrando as conexões entre três vidas – o passado, o presente e o futuro.

 

Aqueles que não concordarem com essa interpretação, ou que preferirem algo mais imediato, poderão encontrar outras alternativas não só no Abhidhamma Pitaka, onde o princípio da Origem Dependente é mostrado na sua totalidade em um momento mental, como também poderão interpretar as mesmas palavras do Buda empregadas para sustentar o modelo padrão sob um ângulo distinto, proporcionando um quadro bastante diferente do princípio da Origem Dependente, algo que é defendido pelos ensinamentos e referências textuais de outras fontes.

 

Os argumentos empregados para defender tais interpretações são muitos. Por exemplo, o conhecimento direto do fim do sofrimento e a vida sem aflições do Arahant são estados que podem surgir nesta presente vida. Não é necessário morrer antes de realizar a cessação do nascimento, envelhecimento e morte e do mesmo modo com a tristeza, lamentação, dor, angústia e desespero. Essas coisas podem ser superadas nesta mesma vida. O ciclo todo da Origem Dependente, tanto no surgimento do sofrimento como na sua cessação, diz respeito à vida presente. Se o ciclo puder ser claramente compreendido da forma como opera no presente, conseqüentemente o passado e o futuro também serão compreendidos de forma clara, porque eles são todos parte do mesmo ciclo.

 

Como referência, considere as palavras do Buda:

 

“Udayin, se alguém fosse recordar as suas muitas vidas passadas, isto é, um nascimento, dois nascimentos...assim, nos seus modos e detalhes, ele se recordasse das suas muitas vidas passadas, então um dos dois, ou ele me perguntaria sobre o passado, ou eu poderia perguntar-lhe sobre o passado e ele poderia satisfazer a minha mente com uma resposta ou eu poderia satisfazer a mente dele com a minha resposta. Se alguém por meio do olho divino, que é purificado e sobrepuja o humano, vê seres falecendo e reaparecendo, inferiores e superiores, bonitos e feios, afortunados e desafortunados... e compreende como os seres continuam de acordo com as suas ações, então um dos dois,  ou ele me perguntaria sobre o futuro ou eu poderia perguntar-lhe sobre o futuro, e ele poderia satisfazer a minha mente com uma resposta ou eu poderia satisfazer a mente dele com a minha resposta. Mas deixemos de lado o passado, Udayin, deixemos de lado o futuro. Eu lhe ensinarei o Dhamma: Quando existe isso, aquilo existe; Com o surgimento disso, aquilo surge. Quando não existe isso, aquilo não pode existir; Com a cessação disto, aquilo cessa.” [M.II.31](MN 79)

 

* * *

 

O chefe de família Gandhabhaga, tendo sentado a uma distância respeitável, dirigiu-se ao Abençoado da seguinte forma, “Que o Abençoado me ensine a origem e a cessação do sofrimento.”

 

O Abençoado respondeu, “Chefe de família, se eu lhe ensinasse a origem e a cessação do sofrimento referindo-me ao passado assim, ‘No passado havia isto,’ a dúvida e a perplexidade surgiriam em você por conta disso. Se eu lhe ensinasse a origem e a cessação do sofrimento referindo-me ao futuro assim, ‘No futuro haverá isto,’ a dúvida e a perplexidade surgiriam em você por conta disso. Chefe de família, eu, aqui e agora, irei lhe ensinar, a origem e a cessação do sofrimento, aqui e agora.” [SN.IV.327]

 

* * *

 

“Produzidas por distúrbios da bílis, Sivaka, surgem certos tipos de sensações. Que isso acontece, pode ser compreendido pela própria pessoa e também no mundo é aceito como verdadeiro. Produzidas por distúrbios do muco…dos ventos…desses três combinados…pela mudança de clima…pelo comportamento adverso…por ferimentos…pelos resultados de Kamma – por meio de tudo isso, Sivaka, surgem certos tipos de sensações. Que isso acontece, pode ser compreendido pela própria pessoa e também no mundo é aceito como verdadeiro.

“Agora quando esses contemplativos e brâmanes possuem esta doutrina e entendimento: ‘Tudo aquilo que uma pessoa experimentar, quer seja prazer, dor ou nem prazer, nem dor, tudo é causado pelas ações passadas,’ então eles vão além daquilo que conhecem por si mesmos e daquilo que é aceito no mundo como verdadeiro. Portanto, eu digo que esses contemplativos e brâmanes estão equivocados.” [SN.IV.230](SN.XXXVI.21)

 

* * *

 

“Bhikkhus, quando existe a deliberação intencional, fixa e firme em relação a qualquer tema, esse tema se torna um objeto para sustentar a consciência. Onde existe um objeto, a consciência tem onde se estabelecer. Quando a consciência está assim estabelecida e desenvolvida com firmeza, o nascimento numa nova esfera (bhava) ocorre. Quando há o surgimento numa nova esfera de existência, nascimento, envelhecimento, morte, tristeza, lamentação, dor, angústia e desespero seguem. Assim ocorre o surgimento de toda essa massa de sofrimento.” [SN.II.65]

 

Embora esta interpretação do princípio da Origem Dependente deva ser entendida pelo que ela é, apesar disso não descartamos a forma estabelecida pelo modelo padrão. Então, antes de explorar o seu significado deveríamos primeiro reiterar o modelo padrão, adaptando as definições de acordo com esta interpretação.

Definição preliminar

1. Ignorância – ignorância da verdade, ou das coisas como elas são; estar deludido pelas realidades nominais; a ignorância que está por detrás das crenças; falta de sabedoria; inabilidade em compreender o ciclo de causa e efeito.

 

2. Impulsos Volitivos – atividades mentais, intenção deliberada, intenção e decisão e a sua geração de ações; a organização da maneira de pensar de acordo com hábitos acumulados, habilidades, preferências e crenças; o condicionamento da mente e da maneira de pensar.

 

3. Consciência – a consciência das sensações, isto é: visão, audição, olfato, paladar, toque e cognição, o estado básico da mente de momento a momento.

 

4. Mentalidade-materialidade (o organismo animado) – a presença da corporalidade e mentalidade como parte da consciência; o estado de coordenação entre o corpo e a mente para que funcionem de acordo com o fluxo da consciência; as mudanças corporais e mentais como resultado dos estados mentais.

 

5. Os seis meios do sentidos – o funcionamento desses meios dos sentidos.

 

6. Contato – o ponto de contato entre a consciência e o mundo externo.

 

7. Sensação – de prazer, de dor ou indiferença.

 

8. Desejo – o desejo de buscar objetos sensuais prazerosos e de escapar dos desprazerosos. O desejo pode ser de três tipos: desejo de ter e desfrutar, desejo de ser e desejo de destruir ou livrar-se.

 

9. Apego – apego e agarramento a sensações prazerosas ou desprazerosas, às condições de vida que arrojam essas sensações e a avaliação e a atitude em relação a essas coisas com base no seu potencial para satisfazer desejos.

 

10. Vir a ser – todo o processo de comportamento gerado para satisfazer o desejo e o apego (kammabhava - o processo ativo); e também as condições da vida que resultam dessas forças (upapattibhava – o processo passivo).[14]

 

11. Nascimento – claro reconhecimento da emergência em um estado de existência; identificação com estados de vida ou modos de conduta e a noção resultante de quem os desfruta, ocupa ou experimenta.

 

12. Envelhecimento e morte – a consciência da separação ou privação do eu de um estado de existência ou identidade; a sensação de ameaça de aniquilação ou separação desses estados de ser; e daí, a experiência resultante de tristeza, lamentação, dor, angústia e desespero (mesmo nas suas formas mais sutis).

Como os elos se conectam

1 => 2. Ignorância como fator determinante para os impulsos volitivos: Sem conhecimento ou consciência da verdade, sem a compreensão clara ou reflexão sábia sobre as experiências, o resultado é o raciocínio confuso baseado na conjectura e na imaginação e condicionado pelas crenças, temores e traços de caráter acumulados. Como conseqüência, isso condiciona todas as decisões ao agir, falar ou pensar.

 

2 => 3. Impulsos volitivos como fatores determinantes para a consciência: Com a intenção, a consciência é condicionada como conseqüência. Temos a tendência, (ou estamos condicionados), a ver, ouvir e cogitar de acordo com  as influências das nossas intenções arraigadas. Além disso, o contexto dentro do qual vemos, ouvimos ou cogitamos também estará condicionado por essas intenções. A intenção irá conduzir a consciência a repetidamente se recordar e proliferar acerca de certos eventos. A intenção também irá condicionar o estado de espirito básico, ou consciência, a assumir ou qualidades finas e boas, ou grosseiras e más; a consciência é condicionada de acordo com as intenções boas ou más.

 

3 => 4. Consciência como fator determinante para a mentalidade-materialidade: A cognição, visão, audição e assim por diante, implicam as propriedades físicas, (rupadhamma), e as propriedades mentais, (namadhamma), que conhecemos e vemos. Além disso, quando a consciência opera, as propriedades físicas e mentais relevantes, (sendo elas a ‘coorte’ da consciência – os khandhas da forma, sensação, percepção e impulsos volitivos), também precisam funcionar de acordo e de modo coordenado com a natureza daquela consciência. Por exemplo, quando a consciência está moldada pela raiva, as percepções que surgem como resultado serão igualmente negativas. O corpo irá assumir características em conformidade com a intenção hostil, tais como expressões faciais agressivas, tensão nos músculos e pressão sangüínea alta. As sensações serão desagradáveis. Quando a consciência assume qualquer característica em particular de forma repetida e habitual, as propriedades mentais e físicas subseqüentes se tornarão os traços corporais e mentais de comportamento e caráter correspondentes.

 

4 => 5. Mentalidade-materialidade como fatores determinantes para os seis meios dos sentidos: Quando a mentalidade-materialidade funciona, os meios dos sentidos relevantes são ativados para satisfazer a sua demanda, (buscando informação relevante ou desfrutando de sensações). Essas portas dos sentidos irão funcionar de acordo com os estados corporais e mentais que as condicionam.

 

5 => 6. Os seis meios dos sentidos como fatores determinantes para o contato: Com o funcionamento das várias portas dos sentidos, o contato, (phassa), o choque com elas ou a plena consciência das sensações, surge na dependência da porta do sentido em questão estar funcionando naquele momento.

 

6 => 7. Contato como fator determinante para a sensação: Juntamente com a consciência das sensações, tem que haver sensações de um tipo ou outro: se não prazerosa ou desprazerosa, então neutra.

 

7 => 8. Sensação como fator determinante para o desejo: Com a experiência de sensações prazerosas segue o deleite e o apego. Isto é o desejo sensual, (kamatanha). Algumas vezes há o desejo por uma posição da qual será possível controlar e desfrutar dessas sensações prazerosas. Este é o desejo de ser ou por estados de ser, (bhavatanha). As experiências que produzem sensações de desconforto ou sofrimento em geral provocam pensamentos de aversão e o desejo de se livrar da fonte daquelas sensações. Este é o desejo por não ser, (vibhavatanha). Entre as sensações neutras, tais como a indiferença ou embotamento, existe um apego sutil, de tal forma que a indiferença é considerada como uma forma sutil de sensação agradável, propensa a evoluir para o desejo por formas mais aparentes de prazer a qualquer instante.

 

8 => 9. Desejo como fator determinante para o apego: À medida que o desejo se torna mais forte, ele se transforma em apego, um tipo de preocupação mental, criando uma atitude para com o objeto do desejo e a avaliação desse objeto; (com vibhavatanha, uma avaliação negativa será formada). Uma posição fixa é adotada em relação às coisas: se houver atração esta precipitará um efeito aglutinante, uma identificação com o objeto da atração. Qualquer coisa conectada com aquele objeto parecerá boa. Quando existe repulsa, o objeto daquela repulsa parece afrontar o eu. Qualquer posição adotada em relação a essas coisas tende a reforçar o apego, que será dirigido para, e por outro lado irá reforçar o valor de:

 

·        Objetos sensuais (kama)

·        Idéias e crenças (ditthi)

·        Sistemas, modelos, práticas e assim por diante (silavatta)

·        A crença num eu, (attavada), que irá alcançar ou será impedida de alcançar os seus desejos

 

9 => 10. Apego como fator determinante para o vir a ser: O apego condiciona bhava, estados de vida, tanto no nível de comportamento, (kammabhava), como em relação ao caráter e propriedades físicas e mentais, (upapattibhava). Estes poderiam por exemplo ser o padrão de comportamento, (kammabhava), e traços de caráter, (upapattibhava), de alguém que aspira ficar rico ou que deseja o poder, fama, beleza, ou que odeia a sociedade e assim por diante.

 

10 => 11. Vir a ser como fator determinante para o nascimento: Dada uma situação de vida para ser ocupada e possuída, um ser surge para preenchê-la como desfrutador ou experimentador. Essa é a sensação distinta de ocupar ou possuir aquela situação de vida. Existe a percepção daquele que age e do que colhe os frutos das ações, daquele que tem êxito e do que fracassa, daquele que ganha e daquele que perde.

 

11 => 12. Nascimento como fator determinante para o envelhecimento e morte: O nascimento num certo estado traz consigo de modo inevitável as experiências de prosperidade e declínio que são parte dele. Estas incluem a iminente degeneração desse estado, as experiências de adversidade e ruína dentro dele, a separação e a destruição dele. Existe a constante ameaça do perigo e a necessidade constante de proteger e manter o eu. A inevitabilidade do declínio e da dissolução, junto com a constante ansiedade e esforço para proteger esse estado desses fatores, se combinam para causar tristeza, lamentação, dor, angústia e desespero, ou, o sofrimento.

Exemplos

1 => 2. Ignorância...impulsos volitivos: Sem conhecer a verdade, conseqüentemente a mente prolifera e imagina, como um homem que, acreditando em fantasmas, (ignorância), é amedrontrado, (impulso volitivo), pela luz refletida dos olhos de um animal à noite; ou como uma pessoa que especula acerca do que outra pessoa tem no seu punho cerrado; ou como uma pessoa que acredita que os seres celestiais são capazes de criar qualquer coisa que queiram e inventa cerimonias ou frases místicas como súplicas; ou como alguém que, desconhecendo a verdadeira natureza das coisas condicionadas, que são instáveis e sujeitas a fatores determinantes, as vê como atraentes e desejáveis e deseja obtê-las e controlá-las. Enquanto algum traço de ignorância ainda estiver presente, impulsos volitivos ou proliferação serão produzidos.

 

2 => 3. Impulsos volitivos ...consciência: Com cetana, (intenção), e com a coloração mental, a consciência como visão, audição e assim por diante, é condicionada em conformidade. Sem a intenção ou interesse, a consciência poderá não surgir, mesmo numa situação em que isso seja possível. Por exemplo, quando estamos lendo um livro envolvente, a nossa atenção não se distrai, mas apenas admite para a consciência o assunto que está sendo objeto de leitura. Até mesmo um ruído forte ou mordidas de mosquitos podem passar desapercebidos. Quando estamos atentados em buscar um objeto em particular, poderemos não notar outros objetos.

 

O mesmo objeto visto em circunstâncias distintas, com intenções distintas, poderá ser encarado de forma distinta, dependendo do contexto da intenção. Por exemplo, um terreno vazio para uma criança pode parecer um ótimo lugar para brincar; para um homem que tenha a intenção de construir uma casa pode parecer um bom local para aposentadoria; para um agricultor, outras características serão importantes, enquanto que para um industrial, ainda outras características serão proeminentes.

 

Se olharmos para o mesmo objeto em momentos distintos, no contexto de pensamentos distintos, diferentes características irão se destacar mais. Ao pensar pensamentos benéficos, a mente é influenciada por esses pensamentos, e interpreta o objeto da atenção nesse contexto. Ao pensar de forma grosseira e prejudicial, a mente toma nota disso e se dirige e interpreta o significado dos objetos associados à atenção à luz desses pensamentos destrutivos. Por exemplo, dentre uma coleção de objetos colocados juntos podem estar uma faca e algumas flores. Um amante das flores poderá apenas notar as flores e nenhum dos demais objetos que estejam colocados junto. Quanto mais intenso for o interesse e a atração por aquelas flores, mais intensa será a atenção dirigida a elas excluindo todo o restante. Uma outra pessoa que esteja buscando uma arma poderá apenas notar a faca. No caso de várias pessoas vendo a mesma faca, uma poderá ter a percepção de uma arma, enquanto que outra poderá ter a percepção de um utensílio de cozinha, enquanto que uma outra poderá vê-la como uma peça de ferro velho, tudo dependendo do referencial e da intenção do observador.

  

3 => 4. Consciência...Mentalidade-materialidade: A consciência e a mentalidade-materialidade são interdependentes, tal como dito pelo Venerável Sariputta:

 

“É como se dois feixes de junco estivessem em pé se apoiando um no outro. Da mesma forma, da mente-corpo como requisito necessário surge a consciência, da consciência como requisito necessário surge a mente-corpo. Se alguém tirasse um dos feixes de junco, o outro cairia. Se alguém tirasse o outro, o primeiro cairia. Da mesma forma, da cessação da mente-corpo ocorre a cessação da consciência. Da cessação da consciência ocorre a cessação da mente-corpo.” [SN.II.114] (SN.XII.67)

 

Nesse contexto, com o surgimento da consciência, a mentalidade-materialidade surge e tem que surgir. Como os impulsos volitivos condicionam a consciência, estes também condicionam a mentalidade-materialidade, mas como a mentalidade-materialidade depende da consciência para sua existência, pois são propriedades da consciência,  diz-se que: “os impulsos volitivos condicionam a consciência e a consciência condiciona a mentalidade-materialidade.” Assim podemos analisar a forma como a consciência condiciona a mentalidade-materialidade da seguinte forma:

 

1. Quando se diz que a mente percebe alguma sensação em particular, tal como ao ver ou ouvir, na verdade é apenas a cognição da mentalidade-materialidade (especificamente os khandhas da forma, sensação, percepção e impulsos volitivos). Tudo que existe no nível experiencial é aquilo que é percebido pela consciência momento a momento, as propriedades físicas e mentais aparentes para os sentidos. Quando há cognição, as propriedades mentais e físicas relativas que são experimentadas existem. A existência de uma rosa, por exemplo, é a cognição pelo sentido visual naquele momento. Exceto por isso, não há uma ‘rosa’ como tal, a não ser como um conceito na mente. A ‘rosa’ não é independente das sensações, percepções e conceitos que ocorrem naquele momento. Assim, quando há consciência, a mentalidade-materialidade também estará ali de forma simultânea e independente.

 

2. A mentalidade-materialidade, especialmente as qualidades mentais que dependem de um certo momento de consciência irão assumir qualidades em harmonia com aquela consciência. Sempre que as atividades mentais, ou impulsos volitivos forem positivos (benéficos ou hábeis), a consciência resultante deles será por conseqüência clara e alegre e a expressão corporal será espirituosa. Quando os impulsos volitivos são negativos (prejudiciais ou inábeis) eles levam à percepção de sensações sob uma perspectiva dura e prejudicial. O estado mental será negativo e a expressão corporal e o comportamento serão influenciados de forma correspondente. Nesse estado, os fatores constituintes, tanto mentais como físicos, estão num estado de alerta para agir em conformidade com os impulsos volitivos que condicionam a consciência. Quando há um sentimento de amor e afeição (impulso volitivo) surge a cognição de sensações prazerosas (consciência), a mente (nama) estará brilhante e alegre, como a expressão facial (rupa). Com a raiva existe a cognição de sensações desprazerosas, a mente ficará deprimida e a expressão facial será mal humorada e agressiva.

 

No campo esportivo, o jogador de futebol foca sua atenção e interesse no jogo em disputa. A sua atenção surge e cessa com intensidade proporcional à força do interesse dele no jogo. Todos os componentes necessários do corpo e mente estão preparados para funcionar e realizar as suas tarefas tal como direcionado. A inter-relação neste caso se refere e inclui o contínuo surgimento e cessação de mentalidade-materialidade (ou propriedades físicas e mentais). As propriedades ativas da mentalidade-materialidade convergem para formar o estado geral do ser conforme direcionado pela consciência e pelos impulsos volitivos (observe a similaridade com bhava).

 

Todos os eventos que ocorrem neste estágio são passos importantes na geração de kamma e dos seus resultados. O ciclo, ou valla, completou uma pequena rotação (ignorância é  contaminação ou kilesa; impulsos volitivos são kamma; a consciência e a mentalidade-materialidade são resultados de kamma ou vipaka ) e está se preparando para iniciar um novo ciclo. Este é um estágio importante na formação de hábitos e características.

 

4 => 5. Mentalidade-materialidade...seis meios dos sentidos: A mentalidade-materialidade precisa funcionar através da consciência do mundo exterior, e junto com a experiência adquirida previamente será por sua vez usada a serviço da intenção ou impulsos volitivos. Assim, os componentes da mentalidade-materialidade que servem como transmissores e receptores das sensações, (os meios dos sentidos), estão num estado de alerta para funcionar de acordo com os seus fatores determinantes. Por exemplo, no caso do jogador de futebol no campo, os órgãos dos sentidos responsáveis por receber as sensações diretamente concernentes ao esporte que está sendo praticado, tais como o olho e o ouvido, serão preparados para receber essas sensações. Ao mesmo tempo, aqueles sentidos não concernentes de imediato, como o paladar ou o olfato, estarão dormentes ou num estado de atividade suspensa.

 

5 => 6. Os seis meios dos sentidos...contato: A atenção surge através dos meios dos sentidos, baseada na coordenação de três fatores: os meios dos sentidos internos, (olho, ouvido, nariz, língua, corpo e mente); objetos sensuais externos, (visões, sons, aromas, sabores, tangíveis e impressões mentais); e consciência (através do olho, ouvido, nariz, língua, corpo e mente). A atenção surge em conformidade com cada meio do sentido em particular.

 

6 => 7. Contato...sensação: Sempre que há o contato tem que haver a experiência de um entre três tipos de sensações: conforto ou prazer, (sukhavedana); desconforto ou dor (dukkhavedana); ou indiferença, nem prazer nem dor, (upekkha ou adukkhamasukhavedana). Do terceiro ao sétimo elo, isto é, de consciência até sensação, é conhecido como o segmento  vipaka, ou resultado de kamma, do ciclo da Origem Dependente. Os elos 5, 6 e 7, em particular, não são nem benéficos nem prejudiciais em si mesmos, mas podem ser os catalisadores para o surgimento de pensamentos e ações benéficas ou prejudiciais.

 

7 => 8. Sensação...desejo: Quando uma sensação prazerosa é experimentada, o desejo em geral vem em seguida. Com a sensação desprazerosa, a reação é de estresse, o desejo de fazer com que o objeto desagradável seja removido ou aniquilado. Também há o desejo de buscar a distração nas sensações prazerosas. As sensações neutras, ou indiferentes, induzem a uma condição de embotamento ou complacência. Ambos são formas sutis e deludidas de sensações prazerosas às quais a mente tende a se apegar. Elas também podem agir como catalisadoras para a geração de desejo por mais sensações prazerosas.

 

O desejo pode ser dividido em três tipos distintos, assim:

 

1. Kamatanha – Desejo por objetos sensuais.

 

2. Bhavatanha – ‘Desejo de ser,’ desejo por situações de vida em particular; num nível mais profundo, isto inclui o instinto pela vida e o desejo em manter uma certa condição ou identidade.

 

3. Vibhavatanha – ‘Desejo de não ser,’ o desejo de escapar ou se ver livre de objetos ou situações desagradáveis; este tipo de desejo em geral se expressa por meio de sentimentos como o desespero, depressão, ódio de si mesmo e auto-piedade.[15]

 

O desejo, portanto, aparece sob três formas principais: como desejo por objetos sensuais, desejo por situações de vida e desejo de se livrar de situações desagradáveis. Esta última forma de desejo é particularmente evidente quando os desejos são frustrados ou contrapostos e se expressa por meio do ressentimento, raiva e agressão.

 

8 => 9. Desejo...apego: Os objetos do desejo se tornam objetos de apego, quanto mais intenso for o desejo, tanto mais intenso será o apego. O desejo evolve para atitudes e valores específicos. Com a sensação desagradável, o apego se manifesta como uma aversão obsessiva em relação ao objeto daquela sensação e um desejo obsessivo de encontrar uma escapatória dele. Dessa forma, existe apego a objetos dos sentidos, a situações de vida que podem proporcioná-los, a identidades, opiniões, teorias e métodos de como obtê-los e ao conceito ou imagem de um eu que desfruta ou sofre com essas situações.

 

9 => 10. Apego...vir a ser: O apego naturalmente afeta a vida de uma forma ou de outra e os seus efeitos ocorrem em dois níveis. Primeiro, o apego amarra o eu ou faz com que ele se identifique com situações particulares na vida, que se acredita poderem ou satisfazer os desejos, ou proporcionar os meios para escapar das coisas que não são desejadas. Se existem situações desejadas, naturalmente existirão situações não desejadas. Esse tipo de situações de vida que são agarradas são chamadas upapattibhava.

 

O apego a qualquer situação de vida irá produzir pensamentos ou intenções ou para que ela se torne realidade, ou para evitá-la. Esses pensamentos incluirão as maquinações para inventar meios e maneiras de realizar aqueles desejos. Todos esses pensamentos e atividades são moldados pela direção e forma de apego. Isto é, eles operam sob a influência de atitudes, crenças, entendimentos, valores e gostos ou desgostos acumulados.

Alguns exemplos simples:

 

·        Desejo pelo renascimento num plano celestial irá causar o apego a ensinamentos, crenças ou práticas que se acredita serem capazes de efetuar tal renascimento, e o comportamento será condicionado de modo correspondente.

 

·        O desejo pela fama irá produzir o apego aos valores e ao comportamento relevante que se pressupõe necessários para alcançar a fama, e ao eu que irá alcançá-la. O comportamento resultante será condicionado por aquele apego.

 

·        O desejo de adquirir posses que pertencem a outrem irá condicionar os pensamentos de forma correspondente. O apego habitua o padrão de pensamento que poderá em algum momento, para aquele que lhe falte circunspecção ou consciência moral, levar ao roubo. O objetivo original de se tornar um proprietário se transforma na realidade na existência de um ladrão. Dessa forma, através da busca para obter objetos dos desejos, as pessoas irão ou criar ações inábeis e desenvolver hábitos ruins, ou criar ações hábeis e desenvolver a virtude, dependendo da natureza das suas crenças e entendimento.

 

O padrão de comportamento específico resultante da influência do apego, incluindo a natureza dos eventos também condicionados, é chamado kammabhava (ações que condicionam o renascimento). As situações de vida que resultam desses modos de comportamento, quer sejam desejadas ou não, são chamadas upapattibhava (estados de renascimento).

 

Este estágio do ciclo da Origem Dependente é essencial na criação de kamma e dos seus resultados, e a longo prazo desempenha um papel crucial no desenvolvimento de hábitos e traços de caráter.

 

10 => 11. Vir a ser...nascimento: Neste ponto surge o distinto sentimento de um eu, uma identificação com uma certa situação ou condição, desejada ou não desejada. Na linguagem do Dhamma poderíamos dizer que um ser surgiu dentro daquele estado (bhava), resultando no sentimento de alguém que é um ladrão, um proprietário, um sucesso, um fracasso, um joão ninguém e assim por diante. No caso da pessoa comum, o nascimento, ou o surgimento da noção do eu, pode ser observado com mais facilidade em tempos de discórdia, quando o apego tende a surgir de maneiras extremadas. Nas discussões, mesmo em debates intelectuais, se as contaminações forem usadas no lugar da sabedoria, uma distinta noção de um eu surgirá na forma de pensamentos tais como, ‘eu sou superior,’ ‘eu sou o chefe,’ ‘ele é o meu subordinado,’ ‘ele é inferior,’ ‘essa é a minha opinião,’ ‘minha opinião está sendo refutada,’ ‘minha autoridade está sendo questionada’ e assim por diante. Todas essas são situações em que a identidade está sendo desacreditada ou ameaçada. O nascimento é portanto mais evidente nos momentos de jaramarana, decadência e morte.

 

11=> 12. Nascimento…envelhecimento e morte: Dado um eu que ocupa ou assume uma certa posição, segue que esse eu será cedo ou tarde privado ou separado daquela posição. O eu é ameaçado pela alienação, frustração, desgraça, conflito e fracasso. Embora ele busque manter sua posição de modo indefinido, tudo que surge tem que experimentar a decadência e a dissolução de forma inevitável. Mesmo antes da dissolução ter início, o eu estará cercado pela ameaça da perdição iminente. Isso intensifica o apego a situações de vida. O temor da morte surge da consciência do perigo. O temor da morte e da dissolução estão incrustados profundamente dentro da mente e estão sempre influenciando o comportamento humano, causando neuroses, insegurança,

a luta desesperada e intensa por situações de vida desejadas e o desespero face ao sofrimento e a perda. Assim, para a pessoa comum, o temor da morte assombra toda a felicidade.

 

Nesse contexto, quando o eu emerge em qualquer situação de vida não desejada, está privado de uma situação desejada ou ameaçado por essa possibilidade, ele fica com o desapontamento e a frustração ou, no idioma Pali, soka (tristeza), parideva (lamentação), dukkha (dor), domanassa (angústia) e upayasa (desespero). Cercado por todo esse sofrimento, o resultado é a distração e a confusão que são funções da ignorância. A maioria dos esforços para aliviar o sofrimento são portanto dirigidos pela ignorância e assim o ciclo continua.

 

Um exemplo simples: Para uma pessoa comum que vive num mundo competitivo, o sucesso não se esgota no mero fenômeno social do sucesso, com todos os seus adornos, mas inclui o apego à identidade de ser uma pessoa bem sucedida, que é um ‘vir a ser,’ ou estado de vida (bhava). Às vezes o sentimento do eu irá se manifestar através de pensamentos como “eu sou um sucesso,” que na verdade significa “eu nasci (jati) como uma pessoa bem sucedida.” No entanto, esse sucesso, no seu sentido mais completo, depende de condições externas, tais como a fama, elogio, alcançar privilégios especiais, admiração e reconhecimento. Nascimento como um “sucesso,” ou “ser bem sucedido,” depende não somente do reconhecimento e admiração dos outros, mas da presença de um derrotado, alguém à custa da qual o sucesso será obtido. Assim que um ser bem sucedido nasce, ele ou ela está ameaçado com o desaparecimento, anonimidade e perda. Nessa situação, todos os sentimentos de depressão, preocupação e decepção que não foram tratados de forma adequada por meio da atenção plena e da clara compreensão irão se acumular no subconsciente e irão exercer influência no comportamento subseqüente de acordo com o ciclo da Origem Dependente.

 

Sempre que ocorre o surgimento do conceito de um eu, existe a ocupação de espaço; onde existe ocupação de espaço, tem que haver uma fronteira ou limite; quando há limite, tem que haver separação; quando há separação tem que haver a dualidade de ‘eu’ e ‘não-eu.’ O eu irá crescer e se estender para fora através do desejo para realizar, para agir e impressionar os demais. No entanto, não é possível que o eu cresça indefinidamente de acordo com os seus desejos. O eu em expansão irá de modo inevitável encontrar obstáculos de uma forma ou de outra e os desejos serão frustrados, se não por parte do exterior, então por parte do interior. Se a pessoa tiver alguma sensibilidade para com a auto-estima dos outros, o obstáculo irá surgir sob a forma do próprio senso de consciência. Se não houver a supressão desses desejos e se for permitido que eles se expressem totalmente, a oposição irá surgir de fontes externas. Mesmo se fosse possível se entregar a cada desejo na sua totalidade, tal atividade causaria o enfraquecimento. Ela apenas serve para aumentar o poder do próprio desejo, junto com o seu assistente, o sentimento de vazio. O desejo não somente cresce na dependência de fatores externos, mas ele também faz crescer o conflito interno. Quando os desejos não são satisfeitos, a tensão, conflito e desespero são o resultado natural.

Um exemplo da Origem Dependente na vida cotidiana

Tomemos um exemplo simples de como o princípio da Origem Dependente opera na vida cotidiana. Suponha que existem dois colegas de escola chamados ‘João’ e ‘José.’ Sempre que eles se encontram na escola eles sorriem e dizem “Olá” um ao outro. Um dia João vê José e se aproxima dele com uma saudação amigável preparada, e só obtém o silêncio e uma expressão azeda como resposta. João se aborrece com isso e deixa de conversar com José. Neste caso, a cadeia de reações poderia evoluir da seguinte forma:

 

1. Ignorância (avijja): João desconhece a verdadeira razão da careta e do silêncio de José. Ele falha na reflexão com sabedoria sobre o assunto e na averiguação das verdadeiras razões para o comportamento de José, que poderia não ter nenhuma relação com os sentimentos dele por João.

 

2. Impulsos Volitivos (sankhara): Como resultado, João prossegue pensando e formulando teorias na sua mente, condicionadas pelo seu temperamento e essas dão origem à dúvida, raiva, ressentimento, mais uma vez na dependência do seu temperamento.

 

3. Consciência (viññana): Sob a influência dessas contaminações, João segue pensando. Ele presta muita atenção e interpreta o comportamento e as ações de José  de acordo com essas impressões anteriores; quanto mais ele pensa a respeito, mais certeza ele tem; cada gesto de José parece ofensivo.

 

4. Mentalidade-materialidade (namarupa): Os sentimentos, pensamentos, estados de espírito, expressões faciais e gestos de João, isto é, o corpo e mente combinados, começam a assumir as características gerais de uma pessoa enraivecida e ofendida, preparada para agir de acordo com essa consciência.

 

5. Meios dos sentidos (salayatana): Os órgãos dos sentidos de João estão preparados para receber uma informação que está relacionada e condicionada pela mentalidade-materialidade no seu estado de raiva e mágoa.

 

6. Contato (phassa): O choque nos órgãos dos sentidos será das atividades ou atributos de José que parecem ser em particular relevantes ao caso, tais como olhares carrancudos, gestos hostis e assim por diante.

 

7. Sensação (vedana): Sensações, condicionadas pelo contato sensual, são do tipo desagradável.

 

8. Desejo (tanha): Vibhavatanha, desejo de não ser, surge o desgosto ou aversão em relação àquela imagem ofensiva, o desejo que ela desapareça ou seja destruída.

 

9. Apego (upadana): Segue o apego e o pensamento obsessivo em relação ao comportamento de José. O comportamento de José é interpretado como um desafio direto; ele é visto como um disputador e aquela situação exige algum tipo de ação corretiva.

 

10. Vir a ser (bhava): O comportamento subseqüente de João está sob a influência do apego e as suas ações se tornam antagônicas.

 

11. Nascimento (jati): À medida que o sentimento de inimizade se torna mais distinto, ele é assumido como uma identidade. A distinção entre ‘eu’ e ‘ele’ se torna mais evidente e existe um eu que é obrigado a responder de alguma forma à situação.

 

12. Envelhecimento e morte (jaramarana): Esse ‘eu,’ ou condição de inimizade, existe e prospera dependendo de certas condições, tais como o desejo de aparentar ser durão, preservar a honra e o orgulho e de ser o vitorioso, sendo que todos possuem o seu respectivo oposto, tais como sentimentos de inutilidade, inferioridade e fracasso. Assim que aquele eu surge, ele é confrontado com a falta de qualquer garantia de vitória. Mesmo se ele obtiver a vitória que deseja, não há garantia por quanto tempo João será capaz de preservar a sua supremacia.  Ele pode, na verdade, não ser o ‘vencedor durão’ que deseja ser, mas ao invés disso o derrotado, o fracote, aquele que se ridiculariza. Essas possibilidades de sofrimento brincam com o estado de espírito de João e produzem estresse, insegurança e preocupação. E estas por seu turno alimentam a ignorância, começando assim uma nova rotação do ciclo. Esses estados negativos são como feridas supuradas que não foram tratadas e assim continuam a desprender o seu efeito ‘venenoso’ na consciência de João, influenciando todo o seu comportamento e causando problemas tanto para ele mesmo como para os outros. No caso de João, ele poderá se sentir infeliz por todo aquele dia, falando de forma grosseira com quem quer que tenha contato com ele e assim aumentando a possibilidade de mais incidentes desagradáveis.

 

Neste caso, se fosse para o João praticar da forma correta ele seria aconselhado a começar com o pé direito. Vendo o mal humor do amigo, ele poderia usar sua  inteligência (yoniso-manasikara: aplicando a atenção de acordo com causas e condições) e refletir que José deveria ter algum problema em mente – ele poderia ter sido censurado pela mãe, ele poderia estar precisando de dinheiro ou ele poderia simplesmente estar deprimido. Se João refletisse dessa maneira nenhum incidente teria ocorrido, a sua mente estaria despreocupada e ele poderia até mesmo ser levado a agir com compaixão e entendimento.

 

Uma vez que a cadeia de eventos tenha sido colocada em movimento, ela pode, no entanto, ser interrompida através da atenção plena em qualquer ponto. Por exemplo, se a cadeia de eventos prosseguisse  até o contato sensual, onde as ações de José foram percebidas de forma negativa, João ainda poderia ter aplicado a atenção plena exatamente naquele ponto: ao invés de cair sob o poder do desejo de não ser, ele poderia, ao invés disso, considerar os fatos da situação e dessa forma obter um outro entendimento do comportamento de José. Ele poderia então refletir de forma sábia em relação a ambas as atitudes, as suas e aquelas do seu amigo, de modo que a sua mente não ficasse oprimida por reações emocionais negativas, mas ao invés disso, respondesse de uma forma mais clara e positiva. Esse tipo de reflexão, além de não criar problemas para ele mesmo também poderia servir para encorajar o surgimento da compaixão.

 

Antes de deixarmos de lado este exemplo, poderia ser de ajuda reiterar alguns pontos importantes:

 

  • Na vida real, o ciclo completo ou cadeia de eventos, tais como aqueles mencionados neste exemplo, ocorrem com muita rapidez. Um estudante ao descobrir que não passou num teste, alguém que recebe uma má notícia, como a morte de um ente querido, ou um homem que vê a sua mulher com um amante, por exemplo, todos podem sentir uma enorme tristeza ou choque, até mesmo sentindo os joelhos fraquejarem, gritando ou desmaiando. Quanto mais intenso for o apego e a ligação emocional, mais intensa será a reação.

 

  • Deve ser enfatizado uma vez mais que a interdeterminação dentro dessa cadeia de eventos não tem que ser obrigatoriamente em ordem seqüencial, da mesma forma como o giz, quadro negro e a escrita são todos fatores determinantes para as letras brancas na superfície do quadro negro, mas não têm que aparecer em ordem seqüencial.

 

  • O ensinamento da Origem Dependente objetiva esclarecer a mecânica da natureza, analisar o desdobramento dos eventos à medida que estes ocorrem, para que as causas possam ser identificadas com mais facilidade e corrigidas. Quanto aos detalhes de como essa correção pode ser efetuada, isso não diz respeito aos ensinamentos da Origem Dependente, mas, ao invés disso, pertencem ao domínio de magga, (o Caminho), ou o Caminho do Meio.

 

Em todo caso, os exemplos dados aqui são bastante simplificados e podem parecer um tanto superficiais. Eles não estão detalhados o suficiente para transmitir a completa sutileza do princípio da Origem Dependente, em especial naquelas seções da ignorância como fator determinante para os impulsos volitivos, e tristeza, lamentação e desespero condicionando mais uma rotação do ciclo. Olhando para o nosso exemplo, pode parecer que o ciclo apenas surge às vezes, que a ignorância é um fenômeno esporádico e que a pessoa comum pode passar longos períodos da sua vida sem o surgimento da ignorância. Na verdade, para o ser não iluminado, a ignorância em graus variados se encontra por trás de cada pensamento, ação e palavra. O nível mais básico dessa ignorância é simplesmente a percepção de que existe um eu que está pensando, falando e agindo. Se esse aspecto não estiver presente na mente, a verdadeira relevância dos ensinamentos para a vida diária terá sido negligenciada. Por essa razão alguns dos aspectos mais profundos dessa cadeia de eventos serão examinados a seguir em mais detalhe.

 

Início >> 4. O formato padrão>> 6. A Natureza das Contaminações


Notas:

 

14. O termo upapattibhava provém do Abhidhamma. Nos Suttas o termo é patisandhipunnabhava (veja Nd2 569). [Retorna]

 

15. Os estudiosos estão divididos quanto à interpretação de bhavatanha e vibhavatanha. Dois ou três grupos de definições desses termos são dadas no Tipitaka e nos Comentários (Vbh.365; Vism.567) Alguns estudiosos comparam bhavatanha com o instinto pela vida ou desejo pela vida Freudiano e vibhavatanha com o instinto pela morte ou desejo pela morte. (Veja M. O'c. Walshe, Buddhism for Today, Allen and Unwin, London, 1962, pag. 37-40.) Existe uma definição particularmente lúcida no Itivuttaka (It.43-44). [Retorna]


Revisado: 18 Janeiro 2003